Não,
nunca a vi tocar, sequer a ouvi, mas sei que sabia tocar o instrumento. Sei que
sabia por que ensinava minha amiga Lelê que ia
ao sótão de sua casa para aprender – meio a contragosto! O bandolim era de Dona Aidê.
Fui
algumas vezes com ela... talvez apenas uma. Lugar enorme que se chegava por uma
escada estreita. Lá em cima, cadeiras e um suporte de partitura para que Lelê
exercitasse. Eu só escutando aquele dedilhar...
Excitava-nos
a imaginação uma casa tão grande, com porão e sótão!
Dona
Aidê era professora de música. Lecionava no ginásio da cidade. Uma mulher
pequenina de altura, de corpo e de gestos. Falava baixo e não me lembro dela
brava. Adorava suas aulas.
Sempre
tive aulas de música com ela, desde o grupo escolar. Lá ensinava-nos a cantar
em cânone[1]:
após a primeira voz cantar as duas
frases iniciais, a segunda voz
começava o mesmo canto e, finalmente a terceira
e última iniciava – finalmente todos
juntos cantando aquelas vozes alternadas.
Era
uma beleza!
Desperta no bosque
Gentil primavera
Com ela chegou o canto
Gorjeio do sabiá
Lá lá lá lá lá lá lá...
Com lindos trinados
Suaves e belos
Gentis vão os passarinhos
Saudando a primavera
Lá lá lá lá lá...
Dona
Aidê tinha uma gaitinha mínima que
usava para dar o tom em que iríamos
cantar.
Fiiiiiiiiii...
De novo fiiiiiiiii... Um, dois, três... Fazia com as mãos de maestro marcando o
compasso e começávamos: Desperta no bosque...
Canto orfeônico
fazia parte das disciplinas no grupo escolar e também no ginásio. Aprendíamos a
solfejar, cantar e ler notas. Sabíamos qual era nossa voz - como eram
classificadas - se contralto, soprano, etc. era assim que éramos destinados às
vozes nas músicas. Das mais agudas às mais graves.
A
classificação se dava com a professora ao piano – da escola – fazendo os
acordes e nós, um a um, cantando as escalas: do, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó...
e ia repetindo mais e mais agudo até onde se conseguia cantar sem desafinar.
Determinadas
as vozes, a sala era dividida em fileiras: a primeira voz, a segunda voz e a
terceira voz. Depois era só aprender a melodia de cada uma.
Ah! Sim, o bandolim...
As
aulas eram dadas no sótão da casa da dona Aidê, um magnífico sobrado na esquina
da Rua Pernambuco com a Rua Piauí, em Avaré. Entrávamos por uma área (terraço) com grades trabalhadas
em ferro fundido, passávamos pela sala de jantar e, não sei como, chegávamos à
escada.
Eu ficava fascinada pelos lindos móveis
antigos, mas não podia ficar olhando, pois minha mãe dizia que era falta de
educação. “Não se repara na casa dos outros, menina! Não é bonito!”
Nessa
foto de 2009, não dá para se ver o sótão, fica
na outra rua à direita da imagem, pois é um sobrado de esquina. Percebe-se o
porão, onde o pai de dona Aidê tocava clarinete. O sobrado, nesta foto, já está com outra aparência, tinha sido
reformado.
A
área ou terraço, não era fechada por vidros, antigamente. Onde se vê o portão
de grade, bem à esquerda, tinha uma cerca baixa de alvenaria e grades de ferro
que protegia o rio (sim ali passa um rio). A primeira janela – também de grade
– era uma porta de garagem – a entrada do porão.
Era
das outras três janelas, na sequência da foto, que se ouvia o som do clarinete
dos Sr. Manuel Afonso. Tantas vezes parei na calçada para escutá-lo... um som
claro, suave, tão agradável!
Que
bom seria se ainda hoje tivéssemos aulas de canto orfeônico nas escolas. A
musicalidade faz falta. O compasso, o aprimoramento do escutar, o distinguir
instrumentos, saber o que são “vozes” e qual é a de cada um, a complexidade de
se cantar em conjunto e onde a individualidade completa o todo...
Precisamos
relembrar Villa Lobos que introduziu
o canto orfeônico nas escolas e regia grandes multidões. Acho que foi ele quem
incentivou Dona Aidê.
Villa
Lobos esteve em Avaré em 30 de agosto de 1931. Regeu um concerto no antigo Cine
Theatro Santa Cruz. Acompanhado de sua primeira esposa e pianista Lucília, e
dos pianistas João de Souza Lima, Guiomar Novaes e Antonieta Rudge Müller, além
do violinista belga Maurice Raskin e das cantoras Anita Gonçalves e Nair Duarte
Nunes. Compunham o que se chamou a Caravana da Arte Brasileira que
percorreu 54 cidades do interior paulista que eram servidas pela Estrada de
Ferro Sorocabana.
Foi
inspirado nessa excursão que Villa Lobos teve a ideia de compor O Trenzinho do Caipira que integra as
Bachianas Brasileiras nᵒ 2 na qual o som da
locomotiva é imitado pelos instrumentos da orquestra[2].
Anísio
Teixeira, grande
educador brasileiro, naquela ocasião,
integrou-se a uma comissão do Ministério da Educação e Saúde encarregada de
estudar a reorganização do ensino secundário no país e, na condição de
Secretário de Educação, convida Villa-Lobos a organizar e dirigir a
Superintendência de Educação Musical e Artística - SEMA.
É
por ocasião dessa empreitada que Villa Lobos pesquisa instrumentos e melodias
folclóricas pelo interior do Estado de São Paulo e, animado, propõe à Vargas,
seu apoiador que institua o ensino obrigatório
de música e canto orfeônico nas escolas.
Vargas
cria em 1932, o Curso de Pedagogia de Música e canto Orfeônico ministrado por
Villa Lobos.
Não
há dúvidas das influências que isso causou pelo interior afora e da mesma
maneira que Villa Lobos conheceu nosso folclore paulista, os caipiras –
habitantes do interior – conheceram ou reconheceram uma orquestra e seus vários
instrumentos.
Também
é sabido que no interior havia Bandas Municipais que tocavam músicas populares, cujos músicos tocavam “de ouvido” ou sabiam ler
partituras. Essas bandas apresentavam-se nos coretos dos jardins e praças... Mas isso é pra outra conversa.
[1] Chama-se cânone a forma polifônica, em que as vozes imitam a linha
melódica cantada por uma primeira voz, entrando cada voz, uma após a outra, uma
retomando o que a outra acabou de dizer, enquanto a primeira continua o seu
caminho: é uma espécie de corrida em que a segunda jamais alcança a primeira.
[2]
Informações tiradas de texto do historiador Gesiel Junior. Para saber mais ver:
http://www.itaponews.com.br/v1/maiscidades/avare/2496-ha-80-anos-avare-sob-a-batuta-de-villa-lobos.html Julho 2013.
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